Lovecraft: profeta da era nuclear?

Com seus contos de horror e ficção científica, o nome de H. P. Lovecraft (1890-1937) subiu ao altar da literatura das mitologias fantásticas. De longe o seu favorito, “A Cor que Caiu do Espaço” (1927) foi o primeiro de sua obra a combinar os dois gêneros. Nas palavras do próprio autor, esse fascinante “estudo de atmosfera” cria uma paisagem assustadora no coração da Nova Inglaterra, região mais velha dos Estados Unidos. A trama é famosa. Depois que um meteorito cai na área rural, uma praga se espalha e envenena o solo, os bichos e os moradores locais com uma substância alienígena.

Das mutações grotescas às cenas de terra arrasada, as imagens que Lovecraft evoca sugerem relações com a doença da radiação. Seus males não só eram conhecidos nos tempos da Guerra Fria, como também eram fonte de medo. Não por acaso, a “cor” é verde-brilhante – assim como o urânio enriquecido – em Morte para um Monstro (1965), primeira adaptação do conto para as telas.

Mas Lovecraft morreu em 1937, ou seja, quase uma década antes da Bomba e da destruição de Hiroshima e Nagasaki. Logo, ele não seria capaz de prever as ogivas nucleares e seus efeitos cataclísmicos, que deixariam o mundo em pânico na segunda parte do século XX. Certo? A princípio, sim. Contudo, o imaginário da radiação e alguns de seus efeitos já se anunciavam e podem, sim, tê-lo inspirado. O envenenamento do solo por substâncias desconhecidas, por exemplo.

A descoberta da radioatividade

Lovecraft era consumidor voraz da ciência de seu tempo. Em I am Providence, o biógrafo S.T. Joshi revela seu gosto por vários ramos do conhecimento. Desde cedo, o autor dedicou-se principalmente à astronomia – antes dela se converter em astrofísica com a Teoria da Relatividade de Einstein, em 1905. Mas foi a química que fez esse gosto nascer. Ele teve, até mesmo, um instrumento para detectar radiação.

De fato, Lovecraft andava por dentro do que havia de novo em seu tempo. Os efeitos da radioatividade vinham à tona na década de 1920, sobretudo nos anos 1930, período mais produtivo da sua carreira. Contudo, desde os primeiros anos do século esse campo era desbravado pela cientista polonesa Marie Curie (1867-1934), cujo trabalho pioneiro fez dela a primeira mulher a ganhar um Nobel.

Mas nem só de prodígios científicos vivia aquela época. Em um terreno fértil para o charlatanismo, havia também curas milagrosas, pensamento mágico e métodos terapêuticos duvidosos, muitos dos quais usavam a radioatividade. Nos círculos médicos, eram comuns técnicas de alto risco como os banhos de rádio (o elemento químico) e o uso indiscriminado dos raios X. Assim como os produtos tóxicos e todo tipo de geringonça. Ainda levaria tempo até que se provasse a relação dessas novidades com a “doença da radiação”, mas, aos poucos, suas causas viriam a público.

O “descampado maldito” de Lovecraft

Não surpreendentemente, o gosto pela ciência refletiu na obra de Lovecraft, que foi admirador de Jules Verne (1828-1905) e outros nomes da ficção científica. As terras tóxicas de “A Cor que Caiu do Espaço”, por exemplo, aludem à radioatividade e à destruição do meio ambiente. Lovecraft tinha certo conhecimento sobre essas questões, embora não ultrapassasse muito o senso comum.

De fato, certas passagens do conto criam imagens pós-apocalípticas de um mundo devastado, coberto de poeira radioativa. Aos olhos do narrador, o que mais impressiona é o “descampado maldito” no centro de um vale. Sob efeito desse fenômeno, as terras da família Gardner precedem as fazendas ucranianas depois do desastre de Chernobyl, que ocorreria posteriormente, em 26 abril de 1986.

Os efeitos no ambiente

As galinhas ficavam acinzentadas e logo morriam, revelando uma carne seca de odor nauseante quando eram cortadas. Os cordeiros engordavam muito além do normal e de repente começavam a sofrer transformações horrendas que ninguém conseguia explicar. A carne ficava imprestável (…). Os porcos ficavam com o corpo cinzento e quebradiço e começavam a se desmanchar antes de morrer, e os olhos e focinhos exibiam alterações bastantes singulares.

A situação era inexplicável, pois esses animais nunca haviam comido a vegetação contaminada. Então algo atacou as vacas. Certas áreas do corpo dos animais se ressequiam ou encolhiam ao extremo, e colapsos e desintegrações atrozes tornaram-se comuns. Nos últimos estágios — pois o resultado era sempre a morte —, observava-se o mesmo aspecto cinzento e quebradiço que afetava os cordeiros (Lovecraft, 2011, p. 40).

Nada mais brotaria “naqueles cinco acres de desolação cinzenta que se estendiam sob o céu como uma grande mancha corroída por ácido” (Lovecraft, 2011, p. 21). De acordo com o relato, “não havia vegetação de nenhum tipo em toda aquela extensão de terra — apenas um fino pó cinzento que nenhum vento parecia espalhar. As árvores próximas eram doentes e retorcidas, e muitos troncos mortos apodreciam ao redor” (Lovecraft, 2011, p. 22). Embora se tratasse de um fenômeno inexplicável, o “descampado maldito” parecia consequência de uma queimada.

Lovecraft como profeta

Explosão da primeira bomba atômica britânica.
Saiba mais em: History Today.

Mal podemos conceber a escala dos desastres nucleares. Na época de Lovecraft não havia uma ideia clara sobre a radioatividade e seus efeitos a ponto de influenciar “A Cor que Caiu do Espaço”. Ainda assim, as semelhanças entre e o envenenamento da terra e o fenômeno alienígena, próprio dos Mitos de Cthulhu, parecem inegáveis. Nesse sentido, o conto surgiu como profecia de catástrofes futuras e do imaginário pós-apocalíptico. Também é exemplar do horror cósmico, pois somos incapazes de ver a radiação, tampouco notamos seus efeitos até que seja tarde demais. Além disso, o conto revela a insignificância dos seres humanos e sua impotência diante de uma fonte de energia devastadora, quase indomável.

Referências

H. P. Lovecraft: prophet of the nuclear age? Grim Reviews (27-03-2011).

I am Providence: The life and times of H.P. Lovecraft (2013), de S. T. Joshi.

“A cor que caiu do espaço” (1927), de H. P. Lovecraft.

Quack!: Tales of Medical Fraud from the Museum of Questionable Medical Devices (2000), de Bob McCoy.

Saiba mais sobre os Mitos de Cthulhu

Grandes Anciões: as abominações cósmicas de Lovecraft

Os Mitos de Cthulhu: a pseudomitologia de Lovecraft

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Lovecraft: profeta da era nuclear?, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/lovecraft-profeta-da-era-nuclear/. Acesso em: 02/05/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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