Estrada Perdida: Mystery Man é avatar de Nyarlathotep?

Lost Highway (1997) Dir. David Lynch Mystery Man (Robert Blake)

O escritor H. P. Lovecraft (1890-1937) escreveu seus principais contos de horror e ficção científica nos anos 1920 e 1930. O cineasta David Lynch iniciou sua carreira nos anos 1970, tornando-se um dos grandes nomes da sua geração. Ambos criaram imagens de pesadelo e entidades sinistras. O que mais eles têm em comum? Em um exercício especulativo, vamos aproximar a mitologia e os universos fantásticos desses autores norte-americanos. Relacionando suas obras, sem dúvida distintas em muitos aspectos, vamos descobrir se o enigmático “Mystery Man” do filme Estrada Perdida (Lost Highway, 1997) é um avatar de Nyarlathotep, um dos Grandes Anciões dos Mitos de Cthulhu.

O horror cósmico de David Lynch

Quais as relações entre Lynch e Lovecraft? O que suas obras têm em comum? A princípio, aproximar autores tão distintos é um exercício desafiador e arriscado. É certo que Lovecraft influenciou diversos cineastas a partir dos anos 1960, mas Lynch nem sempre é visto como um diretor de filmes de horror. Este é um primeiro entrave. No entanto, ao observar a obra de Lynch podemos identificar convenções desse gênero que nos levam ao gótico americano e até mesmo aos Mitos de Cthulhu.

O poder das narrativas visuais de Lynch vem inegavelmente do seu estilo e do modo como explora seus temas. Seus filmes trazem à tona medos enterrados no coração do imaginário norte-americano. Tais medos brotam de lugares e situações cotidianos e tocam no horror cósmico de Lovecraft, como poucos fizeram até então. Nesse sentido, um mergulho mais fundo nas suas relações com os Mitos de Cthulhu revela que o horror, em Lynch, é cósmico e existencial. Provém, sobretudo, de encontros com o desconhecido e o inexplicável. O estranho e o bizarro surge, assim, em contextos de aparente normalidade e nos lugares mais comuns da vida americana: lares, fábricas, restaurantes, lanchonetes.

Seu primeiro longa-metragem, Eraserhead (1977), evoca o horror cósmico – ao mesmo tempo que é uma experiência onírica assustadora. Assim como os filmes Os Últimos Dias de Laura Palmer (Twin Peaks: Fire Walk with Me, 1992), Cidade dos Sonhos (Mulholland Dr., 2001) e Império dos Sonhos (Inland Empire, 2006). Estes, de acordo com o crítico Kim Newman, aproximam-se do horror cósmico de Lovecraft com seus ladrões de corpos interdimensionais. Além disso, trazem personagens estranhos, com mentes perturbadas e delirantes, mundos de sonho, imagens de pesadelo e entidades sinistras.

Lovecraft em Lynch: aproximações

A série Twin Peaks (1990/91) e sua continuação, Twin Peaks: O Retorno (2017), são ótimos exemplos do horror cósmico lovecraftiano, uma vez embaçam as fronteiras entre realidade e imaginação. Nelas, passado, presente e futuro se confundem, deixando assim as portas abertas para outras dimensões. Os personagens que fazem contato com as entidades supostamente maléficas de um outro plano, conhecido como “Black Lodge” (Alojamento Sombrio), inevitavelmente perdem a sanidade.

Nesse sentido, a abordagem de Lynch é, sem dúvida, lovecraftiana. Nos planos oníricos ou interdimensionais há seres estranhos e alegóricos que correspondem aos Grandes Anciões dos Mitos de Cthulhu, ainda que a maioria deles tenha forma humana. Os personagens que se deparam com eles, em face do desconhecido, enlouquecem, sofrem transformações bizarras ou morrem.

Lynch também explora o horror físico ou corporal, isto é, de violência explícita, de corpos que sofrem mutações ou são violentamente destruídos. Não por acaso, Lovecraft foi um expoente desse tipo de horror na literatura, com seus monstros grotescos, transformações horrendas e canibalismo.

Dale Cooper (Kyle MacLachlan) e a entidade Bob (Frank Silva) em Twin Peaks.

A essência da obra de Lynch

Contudo, é na aleatoriedade que o cineasta se afasta do escritor; isso faz de seu trabalho ainda menos previsível. Nos contos de Lovecraft, inclusive nos que integram os Mitos de Cthulhu, a curiosidade dos personagens leva à sua queda. Por exemplo, se alguém ouve um ruído estranho no porão e desce para investigar, ou acha um velho livro e lê suas páginas em voz alta, sabemos que não vai acabar bem.

Em contraste, nos filmes de Lynch pouco importa se os personagens tentam manter distância segura; coisas ruins acontecerão, independentemente das suas escolhas. O poder das narrativas reside, portanto, na aleatoriedade, isto é, no desprezo pela lógica e pela plausibilidade. Esta é a essência de sua obra, que podemos identificar num dos títulos mais cultuados de sua filmografia.

O enredo de Estrada Perdida

Estrada Perdida é o quarto filme de Lynch, depois de Eraserhead, O Homem Elefante (1980) e Veludo Azul (1986). A história com toques de absurdo segue os passos de um músico (Bill Pullman) que vive em Los Angeles. De repente, o músico recebe fitas cassete que contém o registro de cenas íntimas com sua esposa (Patricia Arquette). No momento em que uma nova fita aparece, com cenas do homem sobre o corpo desmembrado da mulher, ele é preso sob acusação de assassinato.

No corredor da morte, o músico tem alucinações e visões perturbadoras do “Mystery Man” ou Homem Misterioso (Robert Blake). A figura sombria surge no deserto, numa cabine em chamas. Num estalo, o prisioneiro vira inexplicavelmente outro homem, um jovem mecânico (Balthazar Getty).

Incapazes de explicar o que ocorreu, as autoridades liberam o rapaz, deixando-o sob a guarda de seus pais e a vigília constante dos detetives. Mas ele, movido pelo seu próprio estilo de vida, acaba se envolvendo com mafiosos e produtores de filmes pornô. A visão do Mistery Man o persegue até o fim.

Estrada Perdida, sem início nem fim

O filme Estrada Perdida, assim como o percurso que seu título sugere, é uma fita de Möbius. Este é um objeto matemático que tem ao colar duas extremidades de uma fita, depois que se dá meia volta em uma delas. A fita, portanto, tem apenas um lado, uma única borda e representa um caminho sem início nem fim. Por analogia, o filme tem uma narrativa circular que foge à lógica de outras mais convencionais.

Fita de Möbius. Fonte: Wikimedia Commons.

De acordo com Scott Tobias, Lynch faz uma escavação a fim de encontrar as “verdades que as pessoas não sabem ou são incapazes de perceber por si mesmas”. Elas estariam “nos sonhos, no subconsciente, naqueles corredores incrivelmente sombrios nos quais tememos pisar”.

Na história dos gêneros cinematográficos, Estrada Perdida tem elementos do film noir, das vanguardas artísticas (surrealismo), do expressionismo alemão e da Nouvelle Vague francesa. Também inclui temas do horror e do thriller psicológico. É, além disso, um exemplar do horror cósmico de tipo lovecraftiano que marca a obra de Lynch. Seu personagem demoníaco, inclusive, parece ter saído dos Mitos de Cthulhu.

O Mystery Man como Grande Ancião

Nos filmes de Lynch há entidades estranhas e amorais que equivalem aos Grandes Anciões de Lovecraft. Esse é, sem dúvida, o caso do Mystery Man de Estrada Perdida. O homem de feições pálidas e assustadoras lembra ao mesmo tempo o cantor alemão Klaus Nomi, o Mestre de Cerimônias de Cabaret (1972) ou um ator expressionista. A figura sinistra aparece ´constantemente em sonhos e alucinações; surge e ressurge feito uma sombra, e fala meia-dúzia de palavras enigmáticas.

Robert Blake como o Mystery Man.

Assim como duas entidades dos Mitos de Cthulhu – o Homem Sombrio e Aquele-Que-Não-É-Nomeado (cônjuge de Shub-Niggurath) – o Mystery Man não tem um nome. E, conforme seu apelido indica, sua própria existência é um mistério. Por analogia, ele guarda ainda mais semelhanças com o Homem Sombrio; está é, sem dúvida, a entidade mais misteriosa do panteão de Lovecraft.

O Homem Sombrio

Figura demoníaca de Os sonhos na casa da bruxa (1933), o Homem Sombrio é um ser encapuzado feito da mais pura escuridão, mais profunda que a noite, com olhos brilhantes de fogo. Todavia, essa entidade também pode assumir a forma de um homem bem vestido, com a pele pálida e os cabelos pretos. A relação com o Mystery Man parece óbvia. Inclusive, devemos lembrar de uma das cenas finais do filme, em que ele surge com uma câmera de vídeo. Isso porque o Homem Sombrio, similarmente, é capaz de manipular equipamentos modernos/tecnológicos a fim de atrair seguidores.

Nyarlathotep

Nos Mitos de Cthulhu, o Homem Sombrio é um avatar do Nyarlathotep. Este, por sua vez, é um Grande Ancião que assume diversas formas. Ele marca presença em várias histórias, mas apareceu pela primeira vez num poema de 1920, que leva o seu nome. Nele, é um homem alto que vagueia pela Terra e lembra um faraó egípcio. Talvez não seja uma coincidência o Mystery Man surgir numa cabana no meio do deserto.

Conhecido como “O Caos Rastejante”, Nyarlathotep difere dos demais Anciões de muitas formas. Em contraste com seus pares, que vivem nas profundezas do espaço e têm meios próprios de se comunicar, ele anda pela Terra disfarçado e fala a língua dos humanos, de modo que se pode passar por um deles. É uma entidade deliberadamente manipuladora e persuasiva, que usa de todos os artifícios para chegar a seus fins. Nesse sentido, assemelha-se aos seus iguais e ao Mystery Man, de Estrada Perdida, que leva um sorriso cínico nos lábios, sabe de muitas coisas e é, inegavelmente, um trapaceiro.

Conclusão

Não parece absurdo ver o personagem do Mystery Man como um avatar de Nyarlathotep. Seria ele uma versão mais contemporânea do Grande Ancião? Talvez seja, ou talvez possamos interpretá-lo dessa forma. Afinal, enquanto um cineasta e artista norte-americano, Lynch bebeu da longa tradição de horror do seu país, o que inclui o horror cósmico e sobrenatural de autores como Ambrose Bierce (1842-1914). E de Lovecraft? Talvez. Assim, Lynch foi capaz de representar em imagem e som alguns dos medos e horrores mais profundos que assombram seus conterrâneos ao longo dos séculos.

Referências

O Chamado de Lovecraft (Tese, 2019), de Lúcio Reis Filho.

Why David Lynch is one of the greatest horror movies directors ever” (Phoenix New Times, 25/10/2018), de Ashley Naftule.

H. P. Lovecraft and the Black Magickal Tradition (2015), de John Steadman.

I am Providence: The Life and Times of H. P. Lovecraft (2013), de S.T. Joshi.

Nightmare movies: horror in the screen since the 1960s (2011), de Kim Newman.

The New Cult Canon: Lost Highway” (The A.V. Club, 11/09/2009), de Scott Tobias.

The King of Weird” (The New York Review of Books, 31/10/1996), de Joyce Carol Oates.

Fonte das imagens

The H. P. Lovecraft Wiki

Para saber mais: Lovecraft e as Tradições Esotéricas.

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Estrada Perdida: Mystery Man é avatar de Nyarlathotep?, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/estrada-perdida-mystery-man-e-avatar-de-nyarlathotep/. Acesso em: 28/04/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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