Will Byers: o mais lovecraftiano de Hawkins

Em 1996, Andy Black citou os principais temas de Lovecraft num ensaio dedicado a ele: seres interdimensionais, monstros grotescos, corredores e cavernas labirínticos. Além destes, merecem destaque a fragilidade da razão humana e o estado mental flutuante dos seus personagens, os quais vêm de sua fase mais gótica. Todos esses temas estão em Stranger Things. A segunda temporada revela o que houve com Will Byers (Noah Schnapp) depois que ele voltou do Mundo Invertido. E mostra como ele é o personagem mais lovecraftiano da série da Netflix.

A fragilidade da razão humana

Nos contos de Lovecraft, o contato com eventos inexplicáveis ou desconhecidos leva à insanidade – e, não surpreendentemente, à morte. De acordo com S.T. Joshi, “Dagon” (1917) é o primeiro de muitos em que o próprio conhecimento leva à perturbação mental. O narrador se abala ao descobrir não só a existência de um mostro, mas de toda uma espécie alienígena que vivia nas profundezas do mundo. A questão é a fragilidade da razão humana. Isso porque, segundo Lovecraft, a Verdade pode causar danos irreparáveis àqueles que vão ao seu encontro.

Por exemplo, o narrador de “A cor que caiu do espaço” (1927) dá uma rica descrição da loucura da senhora Gardner com base no relato do fazendeiro Ammi Pierce:

Aconteceu em junho, mais ou menos quando a queda do meteoro fez um ano; a pobre mulher vociferava a respeito de coisas indescritíveis que pairavam no ar. Nos delírios não havia um único substantivo específico – apenas verbos e pronomes. As coisas moviam-se, transformavam-se e esvoaçavam, e os ouvidos da mulher captavam o ritmo de impulsos que não eram propriamente sons. Algo fora levado – a sra. Gardner se dizia parasitada por alguma coisa – algo que não devia existir.

Em Stranger Things, o raquítico Will Byers sofre terror noturno e colapsos nervosos. O estresse pós-traumático se manifesta logo depois dos eventos da primeira temporada. Tudo começa em 1983, quando os cientistas de um laboratório secreto abrem uma fenda para o Mundo Invertido. Um monstro escapa da dimensão alternativa e rapta Will. A trama gira em torno da busca pelo menino, que reaparece no último episódio. Na segunda temporada (2.1 MADMAX), ele está aparentemente a salvo em casa; mas, num piscar de olhos, se vê numa realidade sombria…

Will Byers, um personagem lovecraftiano

A porta da sala se abre para um mundo estranho, revelando uma paisagem feita de muco e formas orgânicas aberrantes. O céu nebuloso pulsa com os raios vermelhos de uma tempestade elétrica. Em seguida, um imenso monstro aracnídeo surge no horizonte, atrás de uma fileira de árvores mortas. A visão paralisa Will. Mais tarde, ainda no episódio 1, ele narra sua experiência para o Dr. Sam Owens (Paul Reiser):

DR. OWENS: In the Upside Down? All right, so what happened next?

WILL: I heard this noise, and so I went outside and it was worse. There was this storm.

DR. OWENS: Okay. So, how did you feel when you saw the storm?

WILL: I felt frozen. (…) Like how you feel when you’re scared and you can’t breathe or talk or do anything. I felt… I felt this evil, like it was looking at me.

O diagnóstico é estresse pós-traumático, que ocorre nas vítimas de eventos perturbadores. Conforme o médico, a desordem mental trouxe à tona memórias desses eventos – o mesmo ocorre com muitos personagens de Lovecraft. No segundo episódio (2.2 – Trick or Treat, Freak), Will é novamente arrastado para o Mundo Invertido na noite de Halloween.

O horror vem de dentro

Depois de uma nova e perturbadora experiência, Will confidencia a Mike (Finn Wolfhard) as sensações que afloram como resultado dos raptos. No entanto, o amigo questiona a sua sanidade.

WILL: And there was this noise, coming from everywhere. And then I saw something. (…) It was like this huge shadow in the sky. Only, it was alive. And it was coming for me.

MIKE: Is this all real? Or is it like the doctors say, all in your head?

WILL: I don’t know, just… Just please, don’t tell the others, okay?

Mike não deve se preocupar, pois o horror está dentro de Will. Seguindo a fórmula lovecraftiana, o menino é o único capaz de acessar uma realidade fora do alcance dos demais personagens de Stranger Things. À exceção de Eleven (Millie Bobby Brown), que não vê a outra dimensão com estranheza, já que parece fazer parte dela.

Um post do Reddit sugere a influência do conto “Do além” (1934), que o cineasta Stuart Gordon adaptou em 1986. O personagem dessa história se reúne com um velho amigo, que afirma ter descoberto uma dimensão alheia à experiência humana. Ele presume que esse outro mundo sempre esteve lá, invisível e inacessível, até que enfim o revelou. Então, passa a ver as formas de vida estranhas que vivem do outro lado. Numa virada surpreendente, descobre que os seres também o veem; além disso, podem caçar, raptar e até mesmo destruir o nosso mundo.

Em Stranger Things, portanto, a existência de uma dimensão alternativa, onde vivem seres monstruosos e gosmentos, não parece acidental. A curiosidade ingênua e o otimismo científico levam seus personagens ao encontro a toda uma espécie alienígena, à espreita nas margens do nosso mundo. No entanto, é Will Byers quem faz ligação direta com o outro mundo, e sofre as consequências.

Will sob domínio do mal

No episódio 3 (2.3 – The Pollywog), Will está na escola no momento em que os corredores se alteram e uma estranha presença começa a caçá-lo. O menino tenta fugir, mas, quando menos espera, cai numa versão alternativa de Hawkins. Nesse “universo espelho” sombrio que é o Mundo Invertido, portanto, a criatura das trevas surge novamente. A visão perturbadora é constante até esse ponto, então o imenso monstro aracnídeo finalmente domina o menino, penetrando seus orifícios com tentáculos de fumaça.

Mais tarde, Will revela à sua mãe Joyce que viu a “Coisa” no campo, mas não sabe o que ela é ou o que quer (2.4 – Will the Wise). “É quase uma sensação (…) Ele veio até mim e eu tentei. Tentei fazer com que fosse embora. Mas ele me pegou (…). Senti isso em todos os lugares. Todos os lugares. E ainda sinto. Só quero que isso acabe”. Contra a sua vontade, a mente do menino se traz lembranças que não lhe pertencem, ainda assim ele tenta descrevê-las. O domínio da entidade também causa mudanças físicas, provocando colapsos nervosos e um estado de letargia.

Ainda no episódio quatro, Joyce mede a temperatura de Will, que está frio e sente-se como se ainda não tivesse acordado. A “Coisa” parece gostar do frio. Will sabe disso intuitivamente, pois não se comunica diretamente com a entidade. Apenas sabe das coisas, o que mostra a conexão entre a mente superior do parasita e a mente frágil do hospedeiro, bem como a troca de informações, que ocorre telepaticamente. Os primeiros sinais de que Will Byers está sob controle do mal surgem no momento em que o ser começa a falar através do menino.

Entre o sonho e a realidade

Deus misericordioso! Que mundo onírico e quimérico teria adentrado?

H.P. Lovecraft, “A cor que caiu do espaço” (1927).

No episódio 2, as fronteiras entre sonho e realidade se embaçam. Joyce (Wynona Rider), a mãe superprotetora, explica a Hopper (David Harbour) que seu filho reage aos pesadelos como se fossem reais. De fato, o menino conta ao amigo Mike que se sente preso entre o “mundo real” e o Mundo Invertido.

Lovecraft usou esse recurso narrativo com frequência. De acordo com o escritor britânico Neil Gaiman, em seu prefácio a The Dream Cycle of Lovecraft (1995), “sonhos são coisas estranhas, perigosas e indefiníveis”. O “Ciclo dos Sonhos” (“Dream Cycle”) reúne alguns contos do período 1918-1932. Nessas histórias, Lovecraft leva seus personagens às “Terras Oníricas” (“Dreamlands”), isto é, dimensões alternativas que só podem acessar através dos sonhos. O primeiro deles é “Polaris” (1918), no qual um homem confunde o sonho com a realidade. Por sua vez, “The Dream-Quest of Unknown Kadath” (1926) descreve um “mundo inferior”, muito abaixo das Dreamlands. Seres monstruosos vivem nesse plano, sob a misteriosa fosforescência que chamam de “fogo da morte”.

De certa forma, em Stranger Things, Will Byers é capaz de transitar entre o mundo real e uma outra dimensão alheia e assustadora, tanto quanto as Terra Oníricas. Não sem consequências, pois o preço que paga é alto, resultado do medo do desconhecido, dos colapsos nervosos e da degeneração mental.

Referências

O Chamado de Lovecraft (Tese, 2019), de Lúcio Reis Filho.

“A cosmovisão de H.P. Lovecraft em Stranger Things” (Revista Ícone, 2017), , de Lúcio Reis Filho.

“Stranger Things 2: Behind the sequel’s big, bad ‘shadow monster'” (EW, 28/09/2017), de Tim Stack.

The Old, American Horror Behind “Stranger Things” (The New Yorker, 17/08/16), de Joshua Rothman.

I am Providence: The Life and Times of H. P. Lovecraft (2013), de S.T. Joshi.

A Theory of Adaptation (2013), de Linda Hutcheon.

“Crawling celluloid chaos – H.P. Lovecraft in cinema” (Necronomicon – The Journal of Horror and Erotic Cinema – Book 1, 1996), de Andy Black.

The King of Weird” (The New York Review of Books, 31/10/1996), de Joyce Carol Oates.

The Dream Cycle of H.P. Lovecraft (Ballantine Books, 1995).

Leia mais sobre as influências de Lovecraft em Stranger Things:

Stranger Things e Lovecraft: quais as relações?

Devorador de Mentes: de onde vem o monstro de Stranger Things?

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Will Byers: o mais lovecraftiano de Hawkins, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/will-byers-o-mais-lovecraftiano-de-stranger-things/. Acesso em: 28/03/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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