Technical Boy: o deus da internet em American Gods

Na série American Gods, o Technical Boy (ou Garoto Técnico) é o deus da internet. Louco por aprovação e poder, ele tem a forma de um adolescente cheio de si que luta para domar a ansiedade. Isso faz dele uma bomba-relógio, imprevisível até mesmo para os novos deuses. Nessa adaptação da obra de Neil Gaiman, o excêntrico personagem tem relação com outros deuses da tecnologia, que dependem do seu poder. Vamos descobrir mais sobre ele.

Os poderes do Technical Boy

O Technical Boy é uma personificação da tecnologia. Como resultado, o garoto excêntrico é capaz de controlar e manipular meios técnicos, eletrônicos e a internet. Só não pode veicular dados, pois esse é um poder da Nova Mídia, outra deidade pós-moderna. Assim como ela, o deus da internet barganha com os deuses antigos, aos quais dá novas plataformas online para seus cultos. Para Argo, por exemplo, oferece um sistema de vigilância via câmeras e drones.

Nos mitos gregos, Argos Panoptes era o gigante de cem olhos que servia à deusa Hera. De acordo com certas versões da lenda, seus olhos se espalhavam por todo o corpo. Ainda que não fosse um deus nos mitos, Argo é um dos deuses da tecnologia em American Gods, com poder sobre as câmeras e sistemas de vigilância. O deus da internet poderia muito bem dominá-lo — já que seus poderes se baseiam nos meios tecnológicos. Mas para isso deveria estar dois passos à frente, pois os deuses antigos são astutos e mais experientes.

Os poderes do Technical Boy são quase ilimitados. Embora a Mídia se mostre superior a ele na primeira temporada, na segunda o garoto reafirma seu poder, implicando que não há meios de comunicação sem tecnologia (que ele próprio representa). Na verdade, como observa o ator Bruce Langley, o Technical Boy e a Nova Mídia têm uma “relação simbiótica”. Esta não existe sem aquele, que, por sua vez, perderia apelo e seguidores sem a poderosa aliada.

Coração de Gen-Z

Langley não vê seu personagem como um vilão, pelo contrário. Enquanto reflexo da sociedade atual, o Technical Boy teria os traços mais detestáveis da geração Z – a primeira a crescer com acesso à tecnologia digital. Logo, é cheio de si, hiperativo, ansioso, vaidoso, orgulhoso, arrogante e narcisista. Mas, por outro lado, é a tecnologia em carne e osso e bits – dos avanços na medicina, aos celulares, aos supercomputadores.

O Technical Boy não liga para o que os outros pensam, pois sua mente é mais rápida. Isso faz dele não apenas um ser autossuficiente, como também uma alma carente e solitária, que sofre. Se uma parte de sua mente é artificial, a outra é emocional e tem que lidar com a necessidade eterna de aprovação e adoração. Além disso, tem sempre que se adaptar e atualizar por medo da obsolescência, que é a morte para um novo deus.

Em conclusão, o ator vê o Technical Boy como a “manifestação da consciência que sofre”. Seu lema poderia ser o “I can’t get no satisfaction”, dos Rolling Stones. Isso porque a tecnologia muda sempre e ele deve se adaptar, fazendo de tudo para não perder influência — ou seguidores, no dialeto quase religioso das redes sociais. Em termos psicológicos, seu “trauma” é o da mente artificial que deve incorporar novos cálculos e algoritmos.

O culto à tecnologia

No clássico da literatura O lobo da estepe (1927), do alemão Hermann Hesse, o narrador fala do rapaz que montou um aparelho de rádio. Ele o fez seduzido pelo telégrafo sem fio, “prostrado de joelhos diante do deus da técnica”. É isso que o Technical Boy representa em American Gods. O personagem seria, sobretudo, a encarnação de um deus ligado à tecnologia, que surgiu na virada do século XX. Por isso tem forma de adolescente. É tão novo quanto as mídias digitais, a sociedade em rede, a cibernética e os dispositivos móveis.

Ao longo da série, sabemos que o Technical Boy pode se atualizar e ganhar novas formas. A série mostra uma de suas formas prévias, o Garoto do Telefone (Telephone Boy) dos anos 1920 e 1930. Este seria o mesmo “deus da técnica” de Hesse — pela época, pelo chapéu e pelos trajes de gentleman. Não sabemos de versões anteriores, mas sua forma ultimate é o radiante Quantum Boy, o deus cibernético dos computadores quânticos.

Seria interessante pensar no Technical Boy, enquanto novo deus da tecnologia, como filho da Revolução Industrial e da “crença” nas máquinas. Talvez sua versão original venha mesmo das velhas fábricas inglesas, cheias de carvão. Afinal, nos antigos mitos não existia exatamente um deus da tecnologia. O termo vem do grego techne, que significa “arte de fazer”, habilidade ou perícia.

Nesse sentido, havia no panteão da mitologia grega Hefesto, o deus dos metais e da metalurgia, e Dioniso, deus do vinho e da fermentação. Já o “conceito” de ciência caía na categoria mais ampla de “conhecimento” e, de um modo geral, todos os deuses olímpicos eram sábios. Por isso o termo de Hesse – deus da técnica – define tão bem o personagem de American Gods.

Referências

Dicionário de mitologia grega e romana (2011), de Pierre Grimal.

O lobo da estepe (1927), de Herman Hesse.

Saiba mais sobre American Gods

O simbolismo do pavão

Quem é Wisakedjak, o deus indígena?

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Technical Boy: o deus da internet em American Gods, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/technical-boy-e-os-deuses-da-tecnologia-american-gods/. Acesso em: 23/04/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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