Devorador de Mentes: o horror cósmico de Stranger Things

Os Mitos de Cthulhu falam de um panteão de monstros cósmicos que reinaram sobre a Terra, e que voltarão com o propósito de retomar seus domínios. Esse retorno levará, não surpreendentemente, à aniquilação da raça humana. Ao longo do tempo, os contos de Lovecraft influenciaram autores do quilate de Stephen King, Clive Barker, John Carpenter, entre outros, cada qual com sua própria visão desse universo. Entre eles, destacam-se os irmãos Matt e Ross Duffer, criadores da série Stranger Things. Já sabemos que a 2ª temporada desse grande sucesso da Netflix é a mais lovecraftiana de todas. Agora, no entanto, vamos focar no seu grande vilão: o Devorador de Mentes. Assim, vamos descobrir que o monstro tem origem não só na obra de Lovecraft, mas também nos jogos de RPG, com seus bestiários fantásticos. Afinal, essa cultura deve muito ao escritor americano.

Abordagem lovecraftiana

No episódio 1 (2.1 – MADMAX), Will volta ao Mundo Invertido. Nessa versão sombria do mundo real, vê um imenso monstro aracnídeo surgir no horizonte, e ele se move feito uma sombra. Conforme o monstro se aproxima, também vemos que é esse o grande vilão da 2ª temporada de Stranger Things.

A 2ª temporada é, sem dúvida, mais cinematográfica, conforme disseram os irmãos Duffer à Entertainment Weekly e ao programa O Universo de Stranger Things (Beyond Stranger Things, 2017). Por isso, a série ganhou um novo antagonista. Ele não é um ser instintivo, como o Demogorgon, mas uma espécie de mente coletiva que liga todas as coisas. Como resultado, surgiu o Devorador de Mentes, que tem planos, objetivos e consciência, ainda que o espectador não vá necessariamente compreendê-los.

Essa é, de fato, uma abordagem lovecraftiana de horror, como os irmãos Duffer também afirmaram. É o horror cósmico, isto é, aquilo que vem de outra dimensão e representa os segredos do universo, para nós obscuros, pois estão muito além da compreensão humana. Em Stranger Things o monstro se anuncia; parece prestes a chegar, assim como os Grandes Anciões. Tais forças alienígenas, amorfas e abomináveis, nos contos de Lovecraft, vêm de outros mundos ou dimensões. As pessoas azaradas que cruzam o seu caminho então descobrem, para o seu horror, um universo muito mais sombrio e hostil.

Coisa das Sombras: um monstro inominável

No episódio 4 (2.4 – Will the Wise), o delegado Jim Hopper (David Harbor) chama o monstro de “Coisa das Sombras” pois nada sabe a seu respeito. No episódio 8 (2.8 – The Mind Flayer), Mike (Finn Wolfhard), Dustin (Gaten Matarazzo) e Lucas (Caleb McLaughlin) concluem que se trata, na verdade, de uma “mente de colmeia”, isto é, de uma consciência coletiva ou superorganismo no controle de todas as coisas.

Seja o que for, o Devorador de Mentes é quase impossível de se descrever, assim como tantos monstros lovecraftianos, eventualmente chamados de “coisas” por serem inomináveis. Por exemplo, a força alienígena de “A cor que caiu do espaço” (1927) “(…) era quase impossível de descrever; e foi apenas por analogia que puderam designá-la como [cor]”. De acordo com S.T. Joshi, é a impossibilidade de definir a natureza (física ou psicológica) desses monstros ou forças cósmicas que desperta a sensação de horror.

Dustin conclui que o grande objetivo do “Monstro das Sombras” é tomar outras dimensões e conquistar os humanos, pois acredita ser de uma raça-mestra. Considera que as outras raças são inferiores, por isso as escraviza e domina com poderes psíquicos. “Estamos falando da destruição do nosso mundo como o conhecemos”, diz. O monstro vem de uma dimensão desconhecida, e, de tão velho, não se lembra das suas origens. Mas nós e o menino sabemos de onde ele vem. Dustin o compara ao “Devorador de Mentes” (Mind Flayer) de D&D, então passa a chama-lo assim.

As origens em Dungeons & Dragons

Assim como o Demogorgon da 1ª temporada de Stranger Things, o Devorador de Mentes surgiu para os irmãos Duffer enquanto pesquisavam Dungeons & Dragons (D&D). É, portanto, derivado da cultura de RPG e desse jogo, que Gary Gygax e Dave Arneson criaram em 1974.

Esses monstros falam apenas sua própria linguagem arcana e várias outras línguas estranhas supostamente aquelas das terríveis raças das coisas que habitam regiões do mundo subterrâneo para além daquelas em que a humanidade jamais ousou se aventurar. Também há rumores de que esses monstros têm uma cidade em algum lugar embaixo da terra (GYGAX, 1979, p. 60).

O personagem apareceu primeiramente no Monster Manual for Advanced D&D (1977), obra de referência da franquia. Ser raro e de inteligência superior, o Devorador de Mentes tem poderes psíquicos e outras habilidades, tais como levitação, dominação e projeção astral. Contudo, não se trata de um único ser, mas de uma raça cujos membros agem em conjunto. São todos muito maus e veem a humanidade (e sua prole) como gado para se alimentar. Atacam suas vítimas com seus quatro tentáculos e, assim que atingem o alvo, afetam seu cérebro e as matam instantaneamente.

Cara de polvo, coração de trevas

O Devorador de Mentes tem a pele lilás, coberta de gosma brilhante; cabeça de polvo, com olhos brancos; e quatro tentáculos ao redor da boca, orifício dentado como o de uma lampreia. A aparência é inegavelmente a de Cthulhu, que tem forma humana e cabeça de polvo. A semelhança não é acidental.

A inspiração para esse personagem de D&D veio da capa de The Burrowers Beneath (1974), romance de Brian Lumley. A história segue o ocultista Titus Crow conforme ele tenta desvendar o plano dos “Chthonianos” (raça de vermes enormes com tentáculos) contra o povo da Grã-Bretanha. Esse escritor inglês ganhou fama entre os fãs de Lovecraft nos anos 1970, quando escreveu várias histórias com base nos Mitos de Cthulhu. A raça dos “Cefálidas” do RPG Magic: The Gathering tem uma origem comum, pois eles carregam o DNA tanto do Devorador de Mentes quanto de Cthulhu.

Na 2ª edição do Monster Manual, o Devorador de Mentes é um monstro assustador que se alimenta do cérebro de outros seres. Em termos morais, de acordo com o sistema de alinhamento dos personagens de D&D, esse monstro é vil (“lawful evil”). Isso porque segue um rígido código de conduta, usa a sociedade e suas leis em benefício próprio e busca ampliar seus domínios na hierarquia cósmica. Com seus poderes, escraviza ou destrói seus inimigos.

Onde vive: de D&D a Stranger Things

Na mitologia de D&D, o Devorador de Mentes vive nas profundezas de Underdark, pois odeia a luz do sol. Um dos muitos cenários da franquia, seu lar é uma vasta rede de cavernas subterrâneas que formam um mundo inferior. O nome “Underdark” significa “Sob a Escuridão” – é, portanto, muito similar ao Mundo Invertido. Além disso, o maior dos monstros do panteão de Lovecraft é Cthulhu, o “Senhor dos Profundos”, que vive na cidade submersa de R’lyeh.

Sabemos que as cavernas são cenários importantes na obra de Lovecraft. Nesse sentido, os subterrâneos escuros de Hawkins, quase orgânicos em aparência, fazem clara referência ao Alien (1979) de Ridley Scott. (Para muitos, o mais lovecraftiano de todos os filmes). Não só em termos de cenário, mas também dos monstros que vivem na dimensão de horrores que é o Mundo Invertido.

Referências

O Chamado de Lovecraft (Tese, 2019), de Lúcio Reis Filho.

“A cosmovisão de H.P. Lovecraft em Stranger Things” (Revista Ícone, 2017), de Lúcio Reis Filho.

“Stranger Things 2: Behind the sequel’s big, bad ‘shadow monster'” (EW, 28/09/2017), de Tim Stack.

The Old, American Horror Behind “Stranger Things” (The New Yorker, 17/08/16), de Joshua Rothman.

I am Providence: The Life and Times of H. P. Lovecraft (2013), de S.T. Joshi.

A Theory of Adaptation (2013), de Linda Hutcheon.

Lurker in the Lobby: A Guide to the Cinema of H.P. Lovecraft (1995), de Andrew Migliore e John Strysik.

Monster Manual for Advanced D&D (1977), de Gary Gygax.

The Burrowers Beneath (1974), de Brian Lumley .

Leia mais sobre as influências de Lovecraft em Stranger Things

Stranger Things e Lovecraft: quais as relações?

Will Byers: o mais lovecraftiano de Hawkins

Como citar este artigo? (ABNT)

REIS FILHO, L. Devorador de Mentes: o horror cósmico de Stranger Things, Projeto Ítaca. Disponível em: https://projetoitaca.com.br/devorador-de-mentes-de-onde-vem-o-monstro-de-stranger-things/. Acesso em: 08/03/2024.

Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.
Lucio Reis Filho

Lucio Reis Filho

Lúcio Reis Filho é Ph.D. em Comunicação (Cinema e Audiovisual), escritor e cineasta especializado nas interseções entre Cinema, História e Literatura, com foco nos gêneros do horror e da ficção científica. Historiador com especialização em Estudos Clássicos pela Universidade de Brasília, em parceria com a Cátedra Unesco Archai (Unb/Unesco), é Coordenador do Projeto Ítaca. Seus interesses acadêmicos e de pesquisa são essencialmente interdisciplinares; abrangem Cinema, Artes Visuais, História, Literatura Comparada e Estudos da Mídia. Escreve periodicamente resenhas de livros, filmes e jogos para diversas publicações.

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